sexta-feira, 18 de novembro de 2011

notas

O caos instaurou-se na minha cabeça, como se nunca antes tivesse acontecido. Sinto que não consigo aguentar por muito mais tempo estes pensamentos enevoados numa tarde de verão quando, ao mesmo tempo, ideias luminosas parecem cair no abismo, e eu procuro o abismo e encontro meias rotas passadas, que não servem para merda nenhuma. Ah! fosse eu conseguir organizar este caos como arrumo o meu quarto, conseguisse eu puxar as minhas orelhas como as que puxo da cama, fosse a minha mãe, autora de tal expressar, conseguir perceber o que sinto. Fosse toda a gente junta, e mais alguma, perceber que me sinto ansiosa, que todos os pensamentos me atacam num só milésimo de segundo, enquanto leio, enquanto penso, enquanto penso no que li e no que ainda não li, enquanto escrevo o que tenho de escrever, sem pensar no que tenho para fazer. Preciso de descansar, não de dormir. Preciso de descansar sim, de respirar, oh quase nem respiro, neste enleio desenfreado. O caos instaurou-se no chão, agora no chão e eu sinto-me uma merda, pronta a deixar para a amanha o trabalho que deveria ter feito, ai meu querido anonimato quanto tu me custas! Paixão pelos estudos execrável que me ataca mesmo de surpresa, mesmo no romper da noite, falo e penso com muitas pessoas que nunca pensaram comigo. Falo e penso com muitas pessoas que nunca pensaram comigo.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

E se o amor é como pintar fora da linha? E se o amor significa pintar mal os lábios, pintá-los mais acima, como se eles fossem realmente maiores, ou porque se tem uma dioptria no olho esquerdo e consegue-se pintar mal o lado direito? E se o hábito que os faz pintar, torna a maquilhagem numa cena tão bonita como um quadro de arte abstracta? Porque não pintar a cara? Por que razão não amar, perguntam vocês caros leitores. Digo-vos que não há razão para não se poder pintar os lábios, pois eu ontem pintei-os e fui para a cama. A mim pouco me importa se a verdade é matemática, ou se a verdade tem-me fascinado pouco ultimamente, se a verdade se tornar agora sinónimo de vida. Dizia por aí uma música ambulante que vim parar a este sítio de forma matemática, porém tenho muita pena é que a maneira como reajo por vezes, caros amigos, seja de forma tão insignificante que algum cálculo se daria ao luxo de gastar os seus números. E se o nosso amor nos quer dizer que poderia ser outro, se a variável tivesse sido outra? Bem, já estou como o outro, poder podia, mas não era a mesma coisa. Sinceramente, nada me parece matemático quando estou em véspera de exame. Se bem que ter feito a cadeira de lógica II com melhor nota que a de Lógica I me fez pensar que alguns obstáculos na minha vida me passariam ao lado mas não é o meu espanto quando reparo numa bela cicatriz na mão direita. Pois é, até a mim me desiludo, não é só a vocês. Pensei até em tatuar o nome dessa cadeira no braço, mas adiante, falei nesta cadeira a propósito: Caros lógicos experimentem traduzir o meu texto em linguagem formal. Para mim seria uma bela experiência. Sim Polly Jean Harvey, isto sim, seria desejo suficiente de algo. Pois parece que o meu amor de repente se transformou num cálculo. Bem, se nada do que digo está correcto, não me importo, temos sempre uma maneira de descobrir a validade. Pelo menos, foi isso que entendi. Este discurso parece evidentemente desinteressante, mas continua a interessar-me por um certo sentido, esse sentido chama-se presente do presente, chama-se alguma naturalidade e espontaneidade naquilo que me está a passar pelo pensamento. (sim, acho que é aí que passa), e se fosse pelas mãos? (eu sei caros leitores, já tinha dito isto antes). Preferia mais ingenuidade e menos matemática quando se trata de emoções, se faz favor. And that’s all

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Golpe

Como posso tão facilmente esquecer um golpe na minha mão? Golpeado por mim, num vidro que não me lembro de reparar na sua existência senão após deixar de existir, um vidro que se despedaçou e infiltrou algumas das suas partes em mim, as quais se sobrepuseram na minha pele e fizeram uma elevação um tanto vermelha, que dói sempre que passo o dedo. Como pude esquecer tão facilmente tamanha pisadura que poderia ter comprometido o meu futuro, isto nem mais, nem menos, pela simples razão de ter golpeado a mão direita, com a própria força que o braço direito impulsionou ao seu vizinho de baixo, uma mão tão pequena, de pele enrugada, pouco típica para a minha idade. São dezanove anos, são marcas de algo genético que se espalhou pelo meu passado, são marcas iguais às de um familiar meu. Como pude fazer que tal coisa pudesse passar tão despercebida como o minuto que queremos infalivelmente perceber como se processa a sua passagem, mas que, quando olhamos, já é tarde demais. Como isto aconteceu? Que se passou comigo? Quem sou eu? O que é que eu fui fazer? Não duvido de que estas perguntas passaram por mim, as quais não consegui prontamente responder. Muito menos agora, pois há questões que foram feitas para serem respondidas por intuição, sem deixarem qualquer indício de certeza e demonstração. Não vale a pena rebuscar pelo vidro, porque ele já não está lá. Agora, está um novo, ou, se calhar, não parti aquele e aleijei-me noutro sítio qualquer, porque não consigo evitar a dor. Mas consigo apontar de antemão para o sítio onde as gotas de sangue caíram, e consigo lembrar-me da minha mão ensanguentada, e do meu corpo que levitou momentos a seguir. Qual espanto é o meu agora, ao aperceber-me de parte da minha consciência na altura, mas não quero partilhar isso, poderá confundir o leitor e causar demasiadas expectativas ao que pode ser apenas um pensamento retrospectivo do que aconteceu, com um pouco de imaginação à mistura. E é que nutro tamanho gosto pelas palavras, mas são sempre elas que me deixam ficar mal; mesmo o meu silêncio que parece inofensivo, leva sempre com ele os pensamentos dos outros. Mas, afinal o que é que quero? Quero primeiramente continuar a escrever sem realizar um único parágrafo, porque um único que seja influenciaria o meu movimento de pensamento, eu sei disso. Mas o que quero? Perguntem-me o que quero? Quero que o fim do mundo não seja algo muito doloroso, e o fim do mundo é o fim do meu movimento como peça de engrenagem inútil de uma máquina. Quero que seja um final inócuo, cheio de surpresas, mas não quero esse final, nem para mim, nem para ninguém. Oh preciso de cozinhar, preciso de cortar cebola e chorar, preciso de só querer que os meus olhos deixem de arder, preciso de só querer apenas uma necessidade que seja tão básica, mas que demore imenso tempo a passar. Levaria imenso tempo até que alguém me convencesse a gostar de tomate e, talvez, os meus gostos alimentícios sejam a prova mais directa de que continuo a ser o que sou, mas que diferença faz aos demais que já não acreditam nessa mesma continuidade da minha identidade? Nenhuma. Nem para mim faz, pois faria alguma diferença não ser mais o que era? Tenho duas fotos, agora, aqui, pousadas sobre a mesa de jantar, sobre uma tolha verde com flores, manchada de vinho branco e outros sabores. Olho para as duas que estão num porta-retratos de plástico transparente, são fotografias do homem que amo, sim. Uma outra em formato Polaroid me cativa atenção, foi vítima de rouba por minha parte, o que não poderia dizer o mesmo dos meus sentimentos, esses nunca são roubados, são meus, propriedade minha, tanta quanto o meu corpo, isto tudo até prova do contrário. Fotos pousadas sobre a tolha verde, com flores e vinho branco, fotos que me trespassam a mente, e colocam sobre a mesa o presente. Hoje descobri que a foto Polaroid tinha algo mais para me dizer, hoje fez-me lembrar de um diálogo que parecia ser inútil num dia tão inofensivo quanto este está a ser. Esse diálogo trazia com ele uma missão, tal como uma mala de viagem que combina a mesma hora para ser trocada de dono por outra mala exactamente igual àquela, um negócio qualquer escondido. Ora este diálogo trouxe consigo uma mala vazia que eu transportei nesse dia, mas só a desenterrei hoje, estava lá uma arma bem guardada, e eu percebi a mensagem, mas demorei, uma vez que já passou mais de um ano até que voltasse a lembrar-me da mala. Peguei na arma e matei um bicho que se tinha apoderado de mim e que a pessoa da Polaroid se tinha apercebido. Nunca escrevi nada sobre ela, mas quero deixar em algum sítio, até não me importo que aqui seja, que tudo o que veio dela, foi bom, não consigo pensar em alguma coisa de mal que me tenha feito, porque nem sequer imaginar é possível. Espero que estes últimos períodos sejam como a mala que me enviou. São sinceros, e é tudo que se pode esperar da palavra de um homem. Talvez eu tenha percebido isso agora melhor do que nunca. Se a palavra de um homem tivesse sido verdadeira, por cima de qualquer egoísmo insensato, eu não teria golpeado a minha mão direita. Desculpa senhora da Polaroid, sei que isto te teria desiludido, peço desculpa, também, ao meu homem, sempre sincero comigo, mais do que com ele próprio. Um herói. Quero aproveitar ao máximo a minha estadia com ele, para que um dia mais tarde possa relatar os actos heróicos ao meu filho, seja ele quem for ou o que for. O golpe da mão tem uma história, tem um antes e um depois e, se eu escrevesse um livro, as primeiras páginas seriam para relatar um banho que dei ao meu corpo, no qual passei a maior parte do tempo a olhar para as minhas mãos mergulhadas na água, no qual o tempo foi dispensado para eu dar atenção àquela parte do meu corpo e só eu faço uma pequena ideia, melhor do que a de qualquer outra pessoa, daquilo que pensei nos momentos em que as visualizei. Agora a mão direita não é igual ao que era, de vez em quando sinto a dor de tudo, sinto um formigueiro que tento esconder de mim própria para que continue a passar despercebido o acto que não poderei nunca apagar. Não fui capaz de tirar uma foto à minha mão. Ainda não fui capaz, mas agora sou. Agora que escrevi que isto me passou tão despercebidamente como aquele minuto que queremos minuciosamente entender. Um dia destes, desenterro mais uma mala, um dia destes a justiça fará com que a realidade me permita entregar malas, sem que tenha de mexer coisa alguma. E agora tenho de ir, porque a minha vida marcou-me uma coisa para o minuto x, e o y tem de andar sempre a par, e não há nada mais natural do que isto. Sigo a minha viagem, como um viajante e que sorte a minha, que hoje vou andar sozinha de comboio, acompanhada com um livro e alguns leitores que ao mesmo tempo disponham das mesmas leituras que eu, quanto muito daqueles que estão anunciados pelo autor. E a solidão viaja de dentro para fora, e o mundo passa despercebido, tal como o minuto, o segundo, a hora, tal como estação de comboio, as pessoas, os cheiros, o fumo, tal como golpe, o meu, que não é direito na mão direita, que afinal não comprometeu o meu futuro.

domingo, 3 de julho de 2011

Só para lembrar que fui um quadro, num dia qualquer.

Os lençóis dançavam por cima dos nossos corpos, nós não reparámos, estávamos demasiado ocupados com o imaterialismo para o qual os nossos corpos trabalhavam forçosamente, não reparámos em nada, era tudo o que havia para dizer daquilo que fazíamos. Se outros olhos vissem, não teriam visto mais nada do que dois corpos a divertirem-se, a tentarem rebuscar algo e rabiscar no quadro, porque teríamos dado um quadro, um belo quadro por cima de qualquer cama, do qual pudessem traçar dois riscos para indicar outros corpos mais abaixo, outros corpos quaisquer de outra cama qualquer. O problema disto tudo, é que esta simplicidade intratável, porque é uníssona, leva-me ao céu. E depois, tudo parece dançar à minha volta. Nenhum problema acerca do realismo me preocupa senão aqueles que tenho que estudar. Sou feliz contigo e tenho nisso o meu maior realismo de sempre, seja ingénuo, seja meu. Seja tudo o que ele quiser, eu quero amar-te e, por isso, amo-te. Não pode ser vontade, não aquela universalizada, só pode ser a minha, que é muito mais importante que qualquer outra, sou sincera. Nada mais me aflige.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

David Hume e a Identidade Pessoal

Ensaio realizado para a cadeira de Filosofia do conhecimento I (1ª parte)


1 David Hume e as Percepções

“Todas as percepções do espírito humano reduzem-se
a duas espécies distintas que denominarei impressões e ideias.
A diferença entre estas reside nos graus de força e vivacidade
com que elas afectam a mente e abrem caminho para o
nosso pensamento ou consciência.”

Hume defende que na mente existem percepções e hierarquiza-as; divide-as inicialmente em ideias e impressões; as primeiras são pensamentos e, as segundas são as sensações, são os embates dos nossos sentidos com o mundo; relaciona-as: todas as ideias derivam de impressões, não podendo haver ideias sem impressões que lhes correspondam. Como as distinguimos? Hume responde que a distinção entre umas e outras é feita pelo grau de força com que se nos aparecem, ou com que são experienciadas (na mente), isto é, uma impressão será sempre mais vívida, mais límpida, mais forte que uma ideia, pois a ideia, que deriva necessariamente da impressão, terá sempre uma cor mais esbatida, mais baça, menos forte; a impressão seria a fotografia que alguém tira a uma paisagem, a ideia, seria o desenho que alguém faria dessa fotografia. De seguida, divide as ideias e impressões em simples e complexas: - Para Hume, as ideias simples ou impressões simples são aquelas que não permitem distinção ou separação, e concebe contrariamente as complexas, usando o exemplo da maçã que nela podemos distinguir ideias ou impressões simples, que são as de uma cor, de um cheiro ou de um sabor e complexas, a própria maça, a qual (como acabei de realizar) posso dividir em várias partes, simples e indivisíveis (que não podem ser desmontadas). Admite, ainda, que há uma grande semelhança entre as nossas ideias e impressões e que, a única diferença que pode encontrar subjacente a elas é o grau de força e vivacidade.
Hume, conclui que todas as impressões e ideias complexas derivam das simples, na medida em que para compreender as ideias complexas, disseca-as em simples e, se não conseguir identificar as que a compõem, tal não implica que não haja algo que as componha.
Posteriormente, Hume considera que, se as impressões precedem sempre as ideias, então não há verdades de facto, verdades necessárias a priori, pois tudo vem da experiência, - ninguém consegue transmitir a uma criança a ideia de vermelho, sem que esta tenha a impressão que lhe corresponde.
“Não podemos formar uma ideia
exacta do gosto de um ananás, antes de realmente o saborearmos.”
Mas, não é absolutamente impossível que existam ideias que precedam as impressões correspondentes e, para provar isto, Hume utiliza o exemplo das cores e dos seus cambiantes: é possível que, usando a imaginação, não tendo a impressão de uma cambiante de azul, por exemplo, consiga criar a ideia da cor que falta, combinando o mais claro que antecede necessariamente com o mais escuro que lhe sucede.
2 DAVID HUME E A IMAGINAÇÃO
Para Hume, a passagem das impressões para as ideias, pode ser feita de duas maneiras – ou conserva metade da vivacidade inicial, algo intermédio, ou perde totalmente a vivacidade da primeira, constituindo aquilo que ele denominou por ideia perfeita. É através da memória e da imaginação que as ideias e impressões surgem na mente; ao passo que as ideias da memória são mais fortes, mais vívidas que as da imaginação. (Hume constata isto, baseando-se na diferença entre o grau de dificuldade com que retemos as ideias oriundas da imaginação, e aquelas que retemos providas da memória.)
“Outra diferença, não menos evidente, entre estas duas
espécies de ideias é a seguinte: embora nem as ideias da
memória nem as da imaginação, nem as ideias vivazes nem
as ténues possam aparecer na mente enquanto as impressões
correspondentes não se anteciparem a preparar-lhes o
caminho, contudo a imaginação não fica sujeita à mesma
ordem e forma que as impressões originais; pelo contrário,
a memória sob este aspecto fica de certo modo presa, sem
qualquer poder de variação.”

A Imaginação tem a liberdade de poder variar, a memória não, esta é simplesmente a faculdade responsável pela organização das nossas ideias e impressões e pela manutenção delas exactamente como eram originariamente. O poder atribuído à imaginação é a prova, para Hume, da existência de ideias complexas, pois só com a possibilidade de separá-las, a imaginação consegue criar novas ideias sem impressões, directamente, correspondentes; afirma, também, que existem qualidades do pensamento por detrás desses processos de associação, sendo elas de semelhança, de contiguidade no tempo e no espaço e da relação causa e efeito. Ora, neste presente ensaio, recorrendo à explicação breve do meu entendimento sobre a teoria Humeana relativa aos assuntos anteriormente descritos, pretendo descrever a forma como cheguei às minhas objecções, de maneira a que a leitura faça associar, através de algumas destas qualidades do pensamento, as ideias e as impressões que se me decorreram daquelas que interpretei ao ler O Tratado da Natureza Humana.
3 OBJECÇÃO
“ E agora pergunto se
será possível essa pessoa, usando a sua imaginação, suprir
esta deficiência para alcançar a ideia dessa cambiante que
os seus sentidos jamais lhe transmitiram? Julgo que poucas
pessoas serão de opinião que não é possível, e isto
pode servir de prova de que as ideias simples nem sempre
derivam das impressões correspondentes; contudo o caso
é tão particular e tão singular que quase não vale a pena
notá-lo e não merece que, só por causa dele, modifiquemos
a nossa máxima geral.”
Debruçando-me sobre este caso particular, parece-me que o filósofo utilizou um exemplo muito conveniente, deixando de lado todos os outros de maior pertinência. Neste, Hume apresenta a possibilidade de uma pessoa que tenha o sentido visual em condições normais e tenha gozado dele durante trinta anos, que reconheça todas as tonalidades de cores possíveis, excepto uma cambiante de azul; para ele, seria evidente que a pessoa, usando uma das faculdades mentais que permite impulsionar as ideias e impressões na mente, conseguiria descobrir a cambiante que falta, sem nunca ter tido a impressão dela. Parece-me que Hume, com o exemplo acima, pretende provar a existência de ideias simples sem impressões que lhes correspondam, não obstante, acaba por afirmar que a Imaginação é a responsável criadora delas, associando outras derivadas das impressões; logo, se assim o é, Hume não prova a existência de ideias simples sem impressões, mas sim, da existência dessas sem impressões que lhes correspondam directamente. No entanto, a meu ver, há exemplos bem mais pertinentes que justificam a alteração da máxima geral - até porque, dentro de uma cor (considerada ideia simples), consigo dissecá-la noutras cores, nomeadamente as que compõem a primeira, – neste caso, o azul mais claro e o mais escuro respectivamente que conheço, misturados, - sendo assim a quê que poderemos atribuir a designação de ideia simples?
- Quando passo na rua, adquiro imensas impressões de paisagens, cheiros, cores e, sobretudo, das pessoas que passam. Ainda que tenha a ideia da cara de um indivíduo/ser humano (ideia simples), com a impressão que lhe corresponde, e, ainda que muitas das caras que vejo me passem despercebidas (pela quantidade e distracção da minha mente) e, ainda que consiga ter impressões indirectas de todas as caras que vejo diariamente, não consigo perceber o meu espanto sempre que me cruzo com alguém novo. No mesmo seguimento do exemplo da cor, eu deveria, através da Imaginação, criar caras diferentes, não obstante, ainda que consiga criar algumas (conseguindo sempre identificar as ideias ou impressões que lhes correspondem indirectamente), há vezes em que me espanto, por estar a ver algo que nunca tinha visto antes. Ora este exemplo pretende mostrar que podem existir ideias sem impressões precedentes indirectas, ou eu de certa forma deveria aperceber-me delas, assim como consigo identificar cada ideia simples contida na ideia complexa que faço derivar por Imaginação.
Mas eu já tive tantas impressões de indivíduos ao longo da minha vida, então, por que razão crio continuadamente impressões novas e diferentes, ideias novas e diferentes, daquelas que tinha inicialmente? Será porque não descobrimos todas as ideias simples subjacentes ao conjunto que é o indivíduo, ou então porque estas são variáveis pela existência real e concreta de várias identidades, pessoas, incluindo a minha? A nenhuma maçã concebo ideias simples de natureza diferente, mas ao indivíduo sim. Ora é verdade que para toda a cor, Hume propõe um padrão, e é verdade que há um padrão para todas as caras, sem embargo, quando o filósofo fala de tonalidades, então distancia-se do padrão original (de azul), e percorre, à mesma escala, as variações dessas, caras várias no meu exemplo. E eu consigo nessa cara nova dizer que ela faz parte do padrão que defino ser um ser humano, contudo isso não é de todo uma impressão indirecta para aquilo que tive, pois não a criei na minha mente, através da Imaginação. Logo, aquilo que a pessoa do exemplo Humeano cria é a tonalidade e não, de novo, o padrão, havendo, desta forma, ideias que parecem não ter impressões (directas ou indirectas) precedentes, exemplos mais pertinentes capazes de alterar a máxima.
Carla Lopes, Faculdade de Letras Universidade do Porto

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Meu querido amor:

Escrevo da janela do teu quarto, porque agora não me sinto sentada no teu cadeirão preto sisudo, sinto-me fora a olhar para o céu, para a grande cor que me ensinaste a ver desde que te conheci, olho para as árvores, para o sol que se põe atrás delas a medo, para traduzir o que vem de lá de fora que cai em mim sob formas que desconheço (pobres olhos). E eu não sei se o que vem lá de fora, vem cá de dentro, nem sei, muito menos, se o que as minhas mãos escrevem é o amor que elas sentem pelas tuas e não o que as outras partes sentem. Não sei nada disto meu amor, nem sequer o que me apetece escrever a seguir, nem o que faz a vontade de fazê-lo, mas sei que gosto de sentir o teu cheiro, e de todas as vezes que cheiro a tua roupa que carinhosamente dobro, ele é sempre o mesmo, a minha memória está impregnada dele e, se ela fosse um quarto, teria o teu perfume, ou mesmo um palácio, ou até mesmo numa parte do bosque com que sonho vezes sem conta, e, mesmo sonhado, sem ser um jardim muito bem arranjado, com as plantas geometricamente descritas sobre o plano, é sonho, não é bonito e é sonho, cheira a ti e não tenho nariz naquilo que silenciosamente penso.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dentro do meu cérebro há um quarto, com pouca luz, muito pouca, no qual está uma réplica minha sentada no chão, acorrentada à parede, no chão estão migalhas cheias de bolor, já cresceram ervas daninhas à minha volta, alguns cantos cheiram a urina, que me anestesia para que adormeça sem pensar, de vez em quando aparece um homem, qual besta sisuda que me diz poder escolher entre migalhas com bolor ou coisa nenhuma, e são todas iguais, todas do mesmo tamanho, com a mesma doença e eu digo-lhe incessantemente que não consigo escolher, e ele diz-me para o fazer e bate-me para que acorde (ou adormeça de uma vez), eu escolho uma migalha qualquer, ou melhor, que penso eu ser qualquer, quando a besta sabia que era exactamente uma qualquer, porque nesta vida não há importâncias maiores, nem nesta, nem em nenhuma.
Mandei uma carta ao pintor, queria partir-lhe o quadro na cabeça, abrir-lhe a cabeça, chupar um pouco do seu sangue, e dizer-lhe que a sua obra me mete nojo, às vezes, porque é só às vezes que eu não gosto do mundo, nem das suas cores. Algumas pintas de sangue mancharam a tela, e eu criei uma nova cor no meu mundo, acidentalmente, e, acidentalmente, fui assassina durante cinco segundos. O céu do quadro ganhou uma tonalidade avermelhada, assim que espalhei com o dedo algum do seu sangue, que me importa se o criador morreu? A partir do momento em que algo é criado, tem de se deixar ir, como uma mãe que pariu um filho, e o mundo já está há muito tempo sem alguém, o pintor anda ocupado, mas eu não, sempre posso actualizá-lo dentro de mim, mas a besta não me larga, besta sadia que me acorrenta dentro do quarto, com pouca luz, junto a mim, desde que nasci. Quero estar dentro do meu útero, pinta-me isso, por favor, qual será o cheiro dele? Deve ser fascinante ficar durante anos no mundo adormecido, dentro de alguém, à espera de uma ordem para viver, deve ser fascinante ficar calado, cúmplice desta merda toda, deve ser fascinante ouvir a voz da mulher onde se encontra alojado sem nunca a ter visto, “que será ela? Uma besta? Às vezes parece uma, outras parece não ter sexo, às vezes ouço mais vozes do que a dela, mas outras estão mais perto, algumas mesmo perto de mim, a dizer “amo-te” ofegantemente, outras parecem dela, às vezes ela fala com ela própria, besta estranha, que coisa mais estúpida.” Um útero tem cérebro certamente, quanto muito partilhará do meu e saberá que sou uma ela e terá a mesma língua natural que eu. Tanto pampsiquismo para apagar esta solidão! Parabéns escrivaninha, parabéns papel, parabéns caneta, que vivas muitos anos, que tenhas muita saúde, que sejas feliz! …Por que não deste tu consciência a estas coisas? Gostariam elas de ouvir este discurso mundano? Pintor, achas que gosto de ouvir esta merda? Que escolha foi essa a tua, meu caro. Eu desculpo-te, eu desculpo-te! Para não bastar, ainda me desta esta coisa ridícula chamada perdão, que muito sinceramente, ainda foi pior criação que a da consciência, ai pintor, que deste a esta tela dimensões demasiadas.
Vai com o quadro lá para fora, está partido, agora sujo de sangue, vai lavá-lo na chuva fria que cai lá fora, ninguém vai sentir nada de diferente, enche a tigela de sopa à rapariga que morre de fome, dá moedas ao toxicodependente que apenas deseja que lhe desenhes mais uma dose, molha todas as caras, vai apagando o mundo, ninguém notará pela sua falta, afinal o mundo está sempre em constante mudança, apaga o desenho, desenha por cima, toda a gente diz que mudei e a culpa foi tua, estás sempre a desenhar-me formas em cima, vai pintor, de quadro encaixado no sovaco, como eu encaixo todos os livros de filosofia, vai pintor, que me deves uma, não percas tempo!
Desce a rua, aninhado com a tua obra, não olhes para o lado, podes ver algo perfeito e não convém, muda a tua obra, desaparece e reaparece sob a forma que desejarias, e, se desejares ser forma, jamais estarás sobre ela, serás servo dela, acorrentado às paixões, como cada homem que vai segurado ao barão do autocarro, uma tentativa árdua, por vezes nem tanto, de se manter equilibrado, enquanto não se ocupa de coisa nenhuma, calca cada paralelo do soalho, eu gosto de calcar alguns, penso no sabor que terão de tantos pés terem passado, serão estes só para calcar? Terão as ruas algo para nos dizer? É que quando vou sozinha a caminhar, certas ruas mudam o meu pensamento, este caminho idiossincrático das ideias deve ser despontado por algo e, muito sinceramente, creio que seja a minha acção física. Por isso, querido criador, vai dar um passeio, refrescar as ideias e espera que a tua inspiração venha, que a minha não está para breve.